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Corpos de plástico, comidas de laboratório

Durante décadas, a publicidade ensinou que comer era uma fraqueza e que o corpo ideal era uma espécie de troféu moral. 


A geração que cresceu vendo a Barbie e a Polly Pocket aprendeu cedo a se medir por gramas, calorias e tamanhos. O paradoxo é que, enquanto o corpo era miniaturizado nos ideais de beleza, o sistema alimentar se agigantava, até transformar a própria comida em produto de laboratório.


O Guia Alimentar para a População Brasileira já alertava, há mais de uma década, para essa transformação. Alimentos in natura e minimamente processados, como arroz, feijão, verduras e frutas, foram sendo substituídos por produtos prontos para consumo, “formulados com diversos ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial”. 

Esses produtos, chamados ultraprocessados, são fabricados para durar mais, custar menos e viciar o paladar. Refrigerantes, biscoitos recheados, salgadinhos e macarrões instantâneos tornaram-se a base da dieta cotidiana.


A consequência é observável nas estatísticas. Segundo uma síntese publicada pelo professor  Carlos Monteiro no BMJ, que reuniu 45 metanálises com quase dez milhões de pessoas, o alto consumo de ultraprocessados está fortemente associado ao aumento da obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e hipertensão. A mesma revisão apontou evidências moderadas de relação com câncer colorretal, depressão, distúrbios do sono e mortalidade precoce.


Os mecanismos explicam o alcance desses efeitos. Produtos ultraprocessados são hipercalóricos e hiperpalatáveis, o que quebra a autorregulação natural da saciedade. Seus aditivos e emulsificantes alteram o microbioma intestinal, promovendo inflamação crônica de baixa intensidade e impactando o eixo intestino–cérebro, que regula o humor e o apetite.


Mas o problema ultrapassa a biologia. O Guia Alimentar ressalta que a alimentação deve ser entendida em seu sentido pleno, não apenas como ingestão de nutrientes, mas como ato cultural, social e afetivo. 


Comer é também um gesto simbólico: envolve partilha, identidade e pertencimento. Ao deslocar a alimentação para o campo do consumo rápido e individual, a indústria modificou o que comemos, como e com quem comemos.


Essa mudança não ocorreu por acaso. A ascensão dos ultraprocessados nas últimas décadas se deve a um modelo de negócios global baseado em conveniência, escala e publicidade. 


Empresas transnacionais concentram poder, fazem lobby contra regulações e moldam hábitos desde a infância, utilizando marketing agressivo, especialmente voltado ao público infantil, que constrói desejos e condiciona o paladar antes mesmo de a criança aprender a ler.


Enquanto isso, o sistema alimentar sustentável, baseado na agricultura familiar e na produção local, perde força. Em outras palavras, a crise alimentar é também uma crise ambiental e política.


Há um paradoxo especialmente cruel no caso das mulheres. A mesma cultura que vende corpos “perfeitos” oferece, como solução, produtos “zero”, “fit”, “plant-based” e “proteicos”, frequentemente ultraprocessados. A promessa é a de leveza; o efeito, muitas vezes, é o oposto.


O ciclo de restrição e compulsão se alimenta desse ambiente. O medo do corpo leva à culpa, a culpa leva ao consumo de soluções rápidas, e essas soluções perpetuam o problema.


Não é coincidência que os índices de transtornos alimentares e depressão cresçam junto com o consumo de produtos ultraprocessados. A relação entre microbiota intestinal e saúde mental, destacada pelo BMJ, mostra como o corpo e a mente são afetados por esse mesmo sistema, por dentro e por fora.


A resposta não virá de uma dieta da moda, mas de um novo modo de viver e de cozinhar. O Guia Alimentar propõe algun passos simples, mas revolucionários: basear a alimentação em alimentos de verdade, cozinhar mais, comer em companhia, evitar publicidade e produtos ultraprocessados e valorizar a cultura alimentar local.


Essas medidas não são apenas individuais. Implicam políticas públicas robustas. O BMJ recomenda regulação de marketing infantil, rotulagem frontal clara, taxação de bebidas adoçadas e compras públicas saudáveis em escolas e hospitais, ações que o Guia brasileiro já antecipava.


No fim, o gesto mais revolucionário talvez seja o mais antigo: cozinhar. Preparar a própria comida é recuperar autonomia sobre o corpo, o tempo e o paladar.

Como resume o Guia, “a alimentação adequada e saudável é um direito humano básico” e deve garantir acesso justo, prazer e sustentabilidade.


Talvez o corpo ideal não seja o que a indústria inventou, mas o que se reconcilia com a própria fome. Se a Barbie ensinou a desejar um corpo impossível, talvez agora seja a hora de desejar algo mais real: uma comida que volte a ser comida, e um corpo que volte a ser humano.


Artigo desenvolvido como trabalho final do curso "Divulgação Científica para Comunicadores e Jornalistas", da USP, baseado na aula “Informação nutricional, escolhas alimentares e saúde pública”, do prof. Dr. Carlos Monteiro. 


Fontes

  • Ministério da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.

  • Monteiro, C. A. et al. Ultra-processed foods and human health: evidence synthesis and policy implications. BMJ 2023;382:e077310.

  • Aula “Informação nutricional, escolhas alimentares e saúde pública”. Universidade de São Paulo, 2025, do professor Dr. Carlos Monteiro. 


 
 
 

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