Autores: Arthur José Gualberto, Jéssica da Silva Nobre, Luiza Pereira Silva, Marcela Oliveira Santos, Maria Eduarda Chen Ferris
Você já ouviu falar sobre o fenômeno de canibalismo sexual em artrópodes?
O que são artrópodes?
Os artrópodes (Filo Arthropoda) são animais invertebrados pertencentes ao grupo mais diverso do planeta. Eles podem ser encontrados em praticamente todos os habitats e essa capacidade deve-se a um conjunto de características morfofisiológicas que foram perpetuadas ao longo de sua evolução. Mas quais características são essas? Podemos destacar a presença de um exoesqueleto quitinoso e resistente, como uma armadura, que auxilia na proteção e contra a perda d’água; um corpo dividido em segmentos, com a presença de apêndices articulados e órgãos sensoriais bem desenvolvidos.
Esses animais estão divididos em quatro grupos principais: crustáceos, hexapoda, miriápodes e quelicerados. Dentre alguns exemplos mais conhecidos, podemos citar as baratas (hexapoda), formigas (hexapoda), lagostas (crustáceos), camarões (crustáceos), piolhos de cobra (miriápodes), besouros (hexapoda), borboletas (hexapoda), centopeias (miriápodes), aranhas (quelicerados), entre outros. Abaixo podemos observar alguns dos indivíduos já mencionados.
Cephalotes atratus, Onthophagus taurus, Blattella germanica, Jumping spider e Stone centipede © Alex Wild
Tenho certeza que você já viu vários destes animais no seu cotidiano e agora já consegue os identificar!
O que é canibalismo sexual?
O canibalismo sexual é uma relação ecológica intraespecifica (entre a mesma espécie), apresentada por algumas espécies de animais, que consiste no comportamento de predação de um parceiro ou possível parceiro sexual. Na maioria dos casos, a fêmea é a responsável pela predação do macho, ainda que existam, em circunstâncias raras, o fenômeno da predação da fêmea pelo macho. Nessa manifestação de conflito sexual, pode ocorrer a consumação do corpo do parceiro. Já imaginou se esse fenômeno também fosse característico dos seres humanos? O que motivaria esse comportamento e quais as vantagens e desvantagens ele apresentaria?
O canibalismo sexual leva em consideração, na maioria das vezes, o dimorfismo sexual. Mas o que é isso? O dimorfismo sexual é o conjunto de características marcantes que diferenciam os sexos e que funcionam como um atrativo sexual, tais como cor, presença de plumagens exuberantes, capacidade de vocalizar cantos longos e elaborados e, neste caso, diferenças elevadas de tamanho. Entretanto, o dimorfismo sexual não é uma das únicas motivações que podem levar ao canibalismo sexual, como explicaremos posteriormente.
Leia mais sobre The importance of ecological and phylogenetic conditions for the occurrence and frequency of sexual cannibalism em: Wilder_etal_2009_Ann_Rev-with-cover-page-v2.pdf
Quais as possíveis vantagens e desvantagens dessa manifestação sexual?
Pode-se dizer que a principal vantagem - e mais discutida - é de natureza nutricional: o parceiro predado se apresenta como um delicioso lanchinho que, em geral, garantirá nutrientes que aumentam a fertilidade da fêmea e produção de ovos. No entanto, os benefícios podem variar de espécie para espécie e, se estes são maiores que os riscos de ferimentos durante a cópula ou de não ocorrer fertilização, o comportamento tende a ser favorecido evolutivamente.
De quais formas e em que situação o canibalismo sexual pode ocorrer em artrópodes?
Esse fenômeno sexual pode ocorrer de três maneiras diferentes, a depender da espécie analisada, podendo ser pré-copulatório, pós-copulatório ou durante a cópula (acasalamento).
Pós-copulatório: neste caso, a cópula exige um alto custo nutricional da fêmea que após o ato, enxerga o macho como uma presa fácil e de alto valor nutritivo, afinal, como você deve saber, após exercícios de alta intensidade um lanche para repor as energias sempre é bem-vindo! A predação do macho após a cópula auxilia na fertilidade e na produção de ovos, se tornando o tipo de canibalismo que mais favorece a prole.
Pré-copulatório: ocorre quando o macho é predado antes mesmo da cópula e apresenta, de certa maneira, um ponto negativo, já que a fêmea apenas adquire os nutrientes da presa e não possui mais a oportunidade de copular com esse indivíduo, podendo permanecer solteira caso não localize outro macho para o acasalamento.
Durante a cópula: nessa situação o macho é predado enquanto ainda está ocorrendo a cópula e, dessa forma, a fêmea está assegurando a obtenção de nutrientes para sua produção de ovos. Neste tipo de canibalismo a fuga do macho, para evitar ser devorado, é dificultada, pois os indivíduos ainda estão fisicamente unidos devido a cópula.
Você consegue imaginar qual das três maneiras é mais vantajosa para esses artrópodes?
Quais fatores influenciam este processo de canibalismo sexual? Quais seriam as motivações desses animais?
Esse comportamento pode estar interligado, entre outras motivações, à seleção da fêmea por fortes parceiros sexuais (não é uma gracinha que até em artrópodes os indivíduos sempre buscam o melhor para seus filhos?), com determinadas características essenciais para o sucesso reprodutivo (“estado reprodutivo”, tamanho e valor nutricional, por exemplo).
Entretanto, também deve se levar em consideração que a intensidade e a força dessas pressões seletivas é alterada de acordo com as condições em que a seleção ocorreu. Por exemplo, ao analisarmos o canibalismo causado pela representação do macho como um item alimentar, devemos perceber que a força desse tipo de seleção é influenciada diretamente pela disponibilidade e a qualidade das presas no habitat determinado. Visto que, se as presas dessa fêmea estiverem em baixo crescimento populacional a tendência é da canibalização dos machos para compensar essa situação, afinal, caso estivessem com alimento em abundância, os custos de potencial de lesão por retaliação e risco de permanecer não fertilizada não compensariam o valor nutricional obtido.
Em outra ocasião, a disponibilidade de parceiros (fator que pode ser alterado por predação, habitat irregular ou parasitismo em um sexo determinado) pode influenciar na densidade de uma espécie e na razão sexual, podendo ser um fator decisivo para uma fêmea se envolver em canibalismo sexual pré-copulatório ou para um macho evitar o canibalismo sexual pós-copulatório. Um cenário que exemplifica essa questão é a tendência de fêmeas virgens a aumentarem o canibalismo pré-copulatório e a tendência dos machos de fazerem sacrifícios após a cópula, caso haja vantagem de paternidade, em circunstâncias de abundância de machos. Visto que uma diminuição na população de machos aumenta o risco de não se encontrar outro companheiro e, portanto, diminuir a tendência de uma fêmea se envolver em canibalismo pré-copulatório. Sempre é uma questão de balancear os benefícios e os custos!
Concluímos assim, que fatores ecológicos, como disponibilidade de alimentos, densidade populacional e razão sexual podem ser variáveis que exercem impacto em questões ligadas ao crescimento, sobrevivência e reprodução de uma população, portanto, se tornam fatores que influenciam a ocorrência de canibalismo sexual.
Exemplos do fenômeno em artrópodes
O canibalismo sexual pré ou pós-copulatório pode ser observado em espécies de aracnídeos (aranhas e escorpiões) e de insetos (grilos, louva-a-deuses e baratas).
Em aranhas, pode ocorrer a inversão de papéis, como observado em espécies de Allocosa brasiliensis (Lycosidae), típica de áreas costeiras. As fêmeas selecionam os machos para a cópula de acordo com o tamanho das tocas - que são construídas ao longo das dunas de areia e que servirão de abrigo para os ovos e para a prole -, e as que apresentam tamanhos muito pequenos são canibalizadas pelos machos, de forma a, não só garantir energia para a construção das tocas, como também para evitar a cópula com fêmeas consideradas “inferiores”.
Em casos nos quais há canibalismo por parte da fêmea, como observado em espécies de Paratrechalea ornata (Trechaleidae), os machos têm o costume de oferecer presentes nupciais como forma de escapar da morte, garantindo a possibilidade de novas cópulas com fêmeas diferentes. Entenda mais no link: Male mating behavior in the gift-giving spider Paratrechalea ornata
Ainda há muitas dúvidas com relação aos benefícios nutricionais deste comportamento em aranhas (em algumas espécies é comprovado, já em outras, não). Em alguns casos, os machos apresentam pouco valor nutricional e é provável que as fêmeas não recebam nenhum macronutriente por seu tamanho, podendo indicar a possibilidade de que o benefício só ocorre quando o dimorfismo sexual não é tão acentuado ou quando há limitações de alimento. Entre as desvantagens do comportamento, podemos citar o acesso limitado ao esperma e a possibilidade de não ocorrer cópula (principalmente em populações com baixa densidade de machos), já que a busca por um parceiro é muito custosa e o esperma recebido pode não ser suficiente para fertilizar todos os ovos.
Os famosos louva-a-deuses, pertencentes a ordem Mantodea e predadores natos de outros insetos e aranhas, representam um dos exemplos mais conhecidos de canibalismo sexual na natureza. Nas espécies Hierodula membranacea e Pseudomantis albofimbriata, observou-se que este comportamento aumenta a fecundidade das fêmeas e a quantidade de ovos produzidos, já que boa parte das proteínas dos machos vão para os ovos.
Você pode entender mais sobre este comportamento em espécies de louva-a-deus a partir do seguinte vídeo no youtube: Mantis Mating | Wildlife On One: Enter The Mantis | BBC Earth. É só ativar as legendas e aproveitar!
O único caso conhecido de canibalismo sexual mútuo pode ser observado em baratas asiáticas da espécie Salganea taiwaneses, conhecidas por apresentarem parceiros exclusivos (sim, insetos também podem ser monogâmicos!) e ter cuidado parental com a prole, em que os indivíduos comem as asas do parceiro.
Ao contrário dos outros casos de canibalismo sexual já discutidos ao longo do artigo, o comer de asas apresenta nenhum ou pouco valor nutricional (já que se alimentam da parte “não carnosa”), ocorrendo mesmo quando há fartura nas colônias. Então por qual motivo estas baratas continuam a apresentar este comportamento? Ainda não se sabe o motivo exato, mas especula-se que o canibalismo sexual e a monogamia estejam vinculados neste caso, já que provavelmente a prática aumenta o sucesso reprodutivo da espécie. Mas de que forma? Sem as asas, os indivíduos “induzem” uma união vitalícia e são impossibilitados de sair de seu habitat, o que pode ser vantajoso, já que as baratas passam a explorar somente os ambientes mais seguros, evitando encontros com possíveis predadores e custos relacionados à procura de alimento. Além disso, por viverem em galerias de madeira podre, as asas podem ser um inconveniente para indivíduos adultos, de forma que os custos relacionados a sua manutenção podem ser investidos na reprodução ou no cuidado com a prole e não há grandes necessidades de se preocupar com a higiene contra ácaros e mofo.
Um comportamento parecido pode ser observado em grilos da espécie Cyphoderris strepitans, no qual as fêmeas se alimentam das asas dos machos e da hemolinfa que escorre das feridas. Ao contrário do caso acima, os machos não são impedidos de acasalar novamente com outras fêmeas, mas o recurso material disponível é agora menor que o de machos virgens, portanto, passam a ser opções menos proveitosas.
Veja mais em: Sagebrush Crickets Mating
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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