Se você é um entusiasta da paleontologia do Brasil, provavelmente já ouviu falar da incrível Bacia Sedimentar do Araripe, um sítio paleontológico encontrado na divisa dos estados do Piauí, Pernambuco e Ceará. Nela, encontramos a Formação Romualdo, um jazigo fossilífero muito rico em biodiversidade, sendo assim, um local de estudo muito interessante. E hoje, este local vai ser o plano de fundo para contarmos sobre uma curiosa e incomum associação de peixes e caranguejos.
Os caranguejos descritos na Formação Romualdo são das espécies: Araripecarcinus ferreirai, Exucarcinus gonzagai e Romualdocarcinus salesi. As espécies E. gonzagai e R. salesi têm como característica dezenas de carapaças dorsais que são associadas a moluscos e equinoide. Já a espécie A. ferreirai é representada por um único exemplar, cuja porção ventral da carapaça é preservada e associada a um peixe, o Vinctifer comptoni. Após divulgarem essa curiosa associação, nenhum outro caso semelhante havia sido descoberto na região, até cientistas encontrarem quatro concreções calcárias com fósseis de peixes também associados a caranguejos no local. Qual seria a dessa rara interação?
Inicialmente, assim como os cientistas, você pode pensar: “O peixe se alimentava do caranguejo! ”, mas os estudos da morfologia dos dentes e do conteúdo estomacal preservados pela fossilização nos peixes dizem o contrário, apontando hábitos alimentares que não incluiriam o caranguejo. Então, seria a associação um fruto de uma instabilidade do ambiente? De primeira pode parecer ter sentido, afinal, uma mudança bruta e desfavorável poderia causar a morte dos organismos juntos. Mas, chegam os estudos contradizendo novamente, pois as análises dos estágios de desarticulação dos organismos não permitem afirmar que estes tenham morrido a partir do mesmo evento de mortandade.
Outra hipótese seria a de que o caranguejo estaria se alimentando do peixe, o que até faria sentido, pois caranguejos têm uma dieta onívora e podem se alimentar de matéria orgânica em decomposição. Mas os estudos vieram anulando a teoria, pois apontam que os peixes no local de sedimentação chegaram após a morte dos caranguejos. Por fim, levantaram outra hipótese que questionava se o que pareciam retos de caranguejo, na verdade seriam suas mudas. Entretanto, isso não foi para frente, pois a ecdise dos caranguejos se dá de tal forma que romperia uma região do animal, chamada de pterigostomial, que no fóssil aparece intacta. Mas então, o que será?
Quando estudamos fósseis devemos lembrar que nada é tão simples e óbvio quanto parece quando mexemos com algo tão antigo e, além de todos esses fatores das hipóteses a cima, devemos também considerar análises paleocológicas e paleogeográficas, ou seja, análises do ambiente e da geografia locais. Assim, depois dessa longa jornada que é fazer ciência, a hipótese final é a seguinte: os restos dos caranguejos possuem maior idade que os peixes com os quais foram encontrados juntos e esta associação, na verdade, não reflete uma interação entre os indivíduos diretamente. Então, o que levou a preservação conjunta, provavelmente, foi a ação de um evento não seletivo, como uma rota marinha entre os depósitos onde essas espécies estavam.
Figura: Associação de peixe e caranguejos em concreção calcária da Formação Romualdo
Fonte: Prado, L. A. C. do, Lopes, G. L. B., Pereira, P. A., Araripe, R. V. C. de, Oliveira, D. H. de, Lemos, F. A. P., Nascimento, L. R. da S. L. do, Tomé, M. E. T. R., & Barreto, A. M. F. (2021). A incomum associação de peixes e caranguejos da Formação Romualdo, Aptiano-Albiano da Bacia sedimentar do Araripe, NE do Brasil. Revista Brasileira De Paleontologia, 24(2), 149-162. https://doi.org/10.4072/rbp.2021.2.06